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Arpejos na Coluna, de Juliana Bernardo – 332 Poemas No 100
ouça o Poema Arpejos na Coluna, de Juliana Bernardo
arpejos na coluna e suspiros arrancados
uma flor nasce na garganta:
o deus de fogo semeou um deus de carne
Albuns, de Julia Mendes – 332 Poemas No 99
ouça o Poema Albuns, de Julia Mendes
só as fotos de infância permanecem fazendo sentido
as outras parecem momentos prensados
felicidades prensadas
como cartas numa garrafa
Primeira carta para um Clown, de Julia Mendes – 332 Poemas No 86
ouça o poema Primeira carta para um Clown, de Julia Mendes
amar você é como pôr o coração nas mãos
o tempo todo
como afastá-lo da boca do próprio
desejo
como banhá-lo com as dores invisíveis
da compreensão de um amor não cumprido
mas como é possível compreender
o amor satisfeito?
arrancá-lo e ter a certeza
de que se poderia viver sem ele
e que deste espaço
oco
onde certamente deve residir
algum “mar de certezas mor tas”
vá brotar tulipas
ou campos de trigo
mas tudo o que resta
é uma pequena
e esfomeada
trepadeira
amar você é como degolar
a si mesmo
como beijar uma boca gritando
dentadas na nuca
sempre amoladas frente à
uma presa
mas não há presas
no curso de um redemoinho
deito sobre a mesa enquanto mal acabo
um copo de gim
e já voltamos à primeira ação do dia
sonho com corsos, bosques, barcos
tenho a triste constatação
de que [o amor] não mata
(infecciona)
então
esmago os dedos entre os travesseiros
quieta
lenta
tendo que livrar espaço
pergunte ao eliot
se é este o jardim
em que todo amor termina.
Posto para a loucura, Julia Mendes – 332 Poemas No 80
ouça o poema Posto para a loucura, Julia Mendes
tenho afeição por vestir a loucura
ouço, vejo, toco seus ossos magros como
quem come. fatia a carne para um almoço
com certo descaso e certo amor
tenho afeição pelos olhos vermelhos
e verdes. justapostos. da loucura
tenho afeição pelo seu amor que sorri
seus dentes grandes
sua boca. seu lábio. seu mamilo encoberto
pelo frio. foi o frio que te pôs dentro de si
mesmo
que te enfiou, enrolou pelo rabo da loucura
tenho afeição por você
e pela loucura
misturados com um certo prazer que
tenho de te olhar
seus olhos vermelhos verdes justapostos
enrolados pelo cobertor
pela música baixinha
o ronco de uma luz
e a sua buzina já na
outra esquina
me esquecendo no momento
seguinte em que não sou
não posso ser loucura
tenho afeição pelo seu complexo
de avestruz
tua foto vermelha pregada na minha
lembrança como um cão selvagem
um gato
macunaíma
tenho afeição por
você
pela gengiva cheia de saliva
e até pelo cigarro que
você fuma
e eu nunca gostei eu nunca gostei de cigarro
e cigarro saindo dos meus dedos
dos meus olhos vermelhos
verdes justapostos
brasa. chama verde
que escreve períodos inteiros
com mais de uma oração
pela parede
a música baixinha
a luz só da lamparina
o quarto fica inteiro vermelho
com frases. palavras
justapostas e você
saindo por um desenho da minha lembrança
com fiapos vermelhos verdes
imbricados e o fio
da loucura.
Para um corpo Preso, de Julia Mendes – 332 poemas No 74
ouça o poema Para um corpo Preso, de Julia Mendes
então agora acredito na informalidade mais do que em qualquer coisa
acredito neste traço rascunhado no qual andei tentando desenhar teu rosto
acredito em ana c
acredito na chaleira da sofia/bruno intrometendo-se na gravação de um disco
acredito em habitar as coisas cotidianas como habitar um ventre
acredito na desordem que fazem estes livros na prateleira mesmo enfileirados um a um
e por ordem alfabética
acredito na lata de leite vazia guardada no armário da cozinha
há anos
acredito em algumas frases do piva
mas acredito pouco em shakespeare
acredito em pequenas poças de sangue da minha menstruação
e a cor engraçada que fazem no banho
acredito – por que não? – na urgência dos meus amigos
mas acredito pouco na palavra amigos porque os amo como se fossem amantes
já acreditei mais no jornal
e hoje em dia acredito apenas
na sujeira que faz nos meus dedos
ou nos recortes que podem formar frases
esquisitas
acredito no cansaço que os meus livros me causam
acreditamo-nos porque parei de habitá-los tanto quanto eles a mim
e no entanto estamos aqui de frente um ao outro
mantendo esta estranha
e desinteressada relação
acredito nos palhaços pois odeio os palhacinhos de sinal
e odeio os palhaços do dumbo
mas acredito nos trágicos
como o clown bêbado de heinrich böll
sozinho e ácido
ou o palhaço que costuma deitar-se comigo
acredito no sexo
e o tempo que dura
acredito no amor
pois foi a única coisa que devotei a vida inteira
a essas pequenas bugigangas
acredito em dores de garganta
e dores menstruais
acredito num poema do helder recitado por ele mesmo no youtube
acredito em arrepios imaginários
como uma lembrança
acredito que ao tentar escrever
a coisa me sufoque
como se da tinta da caneta insurgisse um poema de volta
para minha própria boca muda
acredito mais num cubo do que num quadrado
mas acredito que um quadrado pode ser
mil vezes mais violento
do que um cubo
],,],],]
acredito no mais
em quase todas as coisas
pois deixo de acreditar instantaneamente em todas as outras
e este é o único exercício que me unta incha
encarna
e assim mesmo
me espanta
e eu torno a ser
como todas as outras coisas uma cadeira
ou um objeto menor
sem ambição alguma
só a ocupação de um espaço
sem tempo porque o tempo não pertence as coisas
as coisas pertencem ao tempo e aos tempos que necessitarem
e o tempo é uma gelatina grossa e fluida
sem função
a não ser o entretenimento das pessoas
como a imaginação ou o ar
mas o espaço está aqui
e tudo é, ainda que não exista,
volume